Espuma dos dias — Como a NATO seduziu a esquerda europeia. por Lily Lynch

Seleção e tradução de Francisco Tavares

7 min de leitura

Como a NATO seduziu a esquerda europeia

O movimento anti-guerra deixou-se transformar num circo progressista

Por Lily Lynch

Publicado por  em 16 de Maio de 2023 (original aqui)

 

Jolie: Christophe Licoppe/Photonews via Getty

 

Em Janeiro de 2018, o secretário-geral da NATO, Jens Stoltenberg, deu uma conferência de imprensa sem precedentes com Angelina Jolie. Embora a InStyle tenha noticiado que Jolie “estava vestida com um vestido preto de bainha sem ombros, uma capa a condizer e uns sapatos clássicos (também pretos)”, este encontro tinha um objectivo mais profundo: a violência sexual na guerra. Os dois tinham acabado de escrever em co-autoria um artigo para o The Guardian intitulado “Porque é que a NATO deve defender os direitos das mulheres”. O momento era significativo. No auge do movimento #MeToo, a aliança militar mais poderosa do mundo tinha-se tornado uma aliada feminista. “Acabar com a violência baseada no género é uma questão vital de paz e segurança, bem como de justiça social”, escreveram. “A NATO pode ser um líder neste esforço”.

Tratava-se de uma face nova e progressista para a NATO, a mesma que, desde então, tem utilizado para seduzir grande parte da esquerda europeia. Anteriormente, nos países nórdicos, os atlantistas tiveram de vender a guerra e o militarismo a públicos maioritariamente pacifistas. Isto foi conseguido, em parte, apresentando a NATO não como uma aliança militar voraz e pró-guerra, mas como uma aliança de paz esclarecida e “progressista”. Como Timothy Garton Ash disse efusivamente no Guardian em 2002, “a NATO tornou-se um movimento de paz europeu” onde se podia ver “John Lennon encontrar-se com George Bush”. Hoje, pelo contrário, após a invasão em grande escala da Ucrânia pela Rússia, a Suécia e a Finlândia abandonaram as suas tradições de neutralidade de longa data e optaram pela adesão. A NATO é retratada como uma aliança militar – e a Ucrânia como uma guerra – que até os antigos pacifistas podem apoiar. Tudo o que os seus proponentes parecem estar a cantar é “Give War a Chance” [Dêem uma oportunidade à guerra].

A campanha de Jolie marcou uma viragem dramática naquilo a que Katharine A.M. Wright e Annika Bergman Rosamond chamam “a narrativa estratégica da NATO” em vários aspectos. Em primeiro lugar, a aliança abraçou pela primeira vez o poder das estrelas famosas, impregnando a sua marca nada notável com glamour e beleza elitista. O poder da estrela Jolie fez com que as imagens sedutoras do evento chegassem a audiências apolíticas com pouco conhecimento da NATO. Em segundo lugar, a parceria parecia inaugurar uma era em que os direitos das mulheres, a violência de género e o feminismo assumiriam um papel mais proeminente na retórica da NATO. Desde então, e especialmente nos últimos 12 meses, líderes femininas telegénicas como a Primeira-Ministra finlandesa, Sanna Marin, a Ministra dos Negócios Estrangeiros alemã, Annalena Baerbock, e a Primeira-Ministra da Estónia, Kaja Kallas, têm servido cada vez mais como porta-vozes de um militarismo esclarecido na Europa. A aliança também intensificou o seu compromisso com a cultura popular, as novas tecnologias e os jovens influenciadores.

Claro que a NATO sempre se preocupou com as relações públicas e há muito que se envolve com a cultura, o entretenimento e as artes. Quem poderia esquecer o álbum Distant Early Warning, de 1999, do duo electrónico Icebreaker International, gravado com financiamento da extinta “NATOarts” e inspirado nas estações de radar ao longo do Alasca e da periferia norte do Canadá, construídas para alertar a NATO de um ataque nuclear soviético que se aproximasse? Ou a longa-metragem de 2007 HQ, produzida pela divisão de diplomacia pública da NATO, que retrata a vida no seio da aliança e uma reacção diplomática simulada a uma crise no estado fictício de Seismania? Quase toda a gente, ao que parece. Mas o que torna a mais recente viragem estratégica da NATO tão eficaz é o facto de ter conseguido fazer eco das tradições e identidades locais progressistas dos países candidatos.

Nenhum partido político na Europa exemplifica melhor a mudança do pacifismo militante para um atlantismo ardente pró-guerra do que os Verdes alemães. A maioria dos Verdes originais tinha sido radical durante os protestos estudantis de 1968; muitos tinham-se manifestado contra as guerras americanas. Os primeiros Verdes defenderam a retirada da Alemanha Ocidental da NATO. Mas à medida que os membros fundadores entraram na meia-idade, começaram a aparecer fissuras no partido que um dia o iriam dividir. Começaram a formar-se dois campos: os “Realistas” são os Verdes moderados, politicamente pragmáticos. Os “Fundadores” são o campo radical e intransigente; querem que o partido se mantenha fiel aos seus valores fundamentais, aconteça o que acontecer.

Previsivelmente, os Fundadores acreditavam que a paz europeia seria melhor servida pela retirada da Alemanha Ocidental da aliança e tendiam a favor da neutralidade militar. Entretanto, os Realistas acreditavam que a Alemanha Ocidental precisava da NATO. Defendiam mesmo que a retirada levaria ao retomar das questões de segurança ao Estado-nação alemão e correria o risco de reacender o nacionalismo militarista. A sua NATO era uma aliança pós-nacional e cosmopolita, que falava muitas línguas e arvorava muitas bandeiras, protegendo a Europa dos impulsos mais destrutivos da Alemanha. Mas a adesão à NATO no final da história era uma coisa. A Alemanha entrar novamente em guerra – o mais proibido dos tabus depois da Segunda Guerra Mundial – era outra coisa completamente diferente.

O Kosovo mudou tudo. Em 1999 – o 50º aniversário da fundação da NATO – a aliança começou aquilo a que o académico Merje Kuus chamou uma “metamorfose discursiva”. Da mera aliança defensiva que era durante a Guerra Fria, estava a tornar-se um pacto militar activo preocupado com a difusão e defesa de valores como os direitos humanos, a democracia, a paz e a liberdade muito para além das fronteiras dos seus Estados membros. Os 78 dias de bombardeamentos da NATO contra o que restava da Jugoslávia, aparentemente para pôr fim aos crimes de guerra cometidos pelas forças de segurança sérvias no Kosovo, transformariam para sempre os Verdes alemães.

Numa caótica conferência do partido realizada em Maio de 1999, em Bielefeld, os Realistas e os Fundadores discutiram duramente sobre o bombardeamento. O Ministro dos Negócios Estrangeiros dos Verdes, Joschka Fischer, o Realista mais proeminente, apoiou a guerra da NATO; por isso, os participantes na conferência atiraram-lhe com tinta vermelha. A proposta dos Fundadores exigia a cessação incondicional dos bombardeamentos, o que teria também implicado o colapso do governo de coligação entre os Verdes e o Partido Social Democrata (SDP). A proposta de paz falhou, esmagando a facção anti-guerra do partido, que abandonaria em massa os Verdes. Em vez disso, a resolução moderada dos Realistas triunfou por uma margem confortável. Após uma breve pausa, o bombardeamento da Jugoslávia foi autorizado a continuar. Com o apoio crucial dos Verdes, a Luftwaffe sobrevoou Belgrado, 58 anos depois do seu último bombardeamento aéreo da capital sérvia. Foi a primeira operação militar alemã efectuada na Europa desde a Segunda Guerra Mundial.

Após o início da guerra em grande escala na Ucrânia, a ministra dos Negócios Estrangeiros dos Verdes alemães, Annalena Baerbock, continuou a tradição de Fischer, repreendendo os países com tradições de neutralidade militar e implorando-lhes que se juntem à NATO. Invocou a frase de Desmond Tutu: “Se formos neutros em situações de injustiça, escolhemos o lado do opressor”. E os Verdes até já fizeram ventriloquismo com os seus próprios membros falecidos, incluindo Petra Kelly, um ícone anti-guerra e defensora de longa data do não-alinhamento, que morreu em 1992. No ano passado, a co-fundadora dos Verdes, Eva Quistorp, escreveu uma carta imaginária a Petra Kelly no jornal TAZ. A carta toma emprestadas as posições morais de Kelly e inverte-as para justificar a adesão dos Verdes à guerra. Quistorp quer que pensemos que, se Kelly estivesse viva hoje, teria sido uma apoiante da NATO. Dirigindo-se a Kelly, já falecida, Quistorp afirma: “Aposto que gritaria que o pacifismo radical torna possível a chantagem”.

No início deste ano, o Ministério Federal dos Negócios Estrangeiros da Alemanha também lançou uma nova “Política Externa Feminista“, o último de vários ministérios dos negócios estrangeiros europeus a fazê-lo. Esta nova orientação, também adoptada pela França, Países Baixos, Luxemburgo e Espanha, pinta o militarismo cosmopolita com um brilho feminista pseudo-radical, abrindo o domínio da guerra e da segurança às activistas dos direitos das mulheres. As líderes feministas sem estados de alma são apresentadas como o contraponto ideal aos “homens fortes” autoritários.

A Suécia foi o primeiro país a adoptar uma política deste tipo em 2014, permitindo-lhe projectar o seu feminismo de Estado de longa data no estrangeiro e assumir uma nova postura moral na arena internacional. A nível interno, as revistas femininas publicam artigos atlantistas positivos. Na secção “Mama” do jornal sueco Expressen, dirigida ao público feminino, uma entrevista com Angelina Jolie sublinhava que a NATO pode proteger as mulheres da violência sexual na guerra. Jolie sublinhou também que não há grande diferença entre os trabalhadores da ajuda humanitária e os soldados da NATO, uma vez que “lutam pelo mesmo objectivo: a paz”.

A académica Merje Kuus escreveu que o alargamento da NATO envolve “uma estratégia de legitimação dupla“. Em primeiro lugar, a NATO é tornada vulgar e banal, corrente e quotidiana, e, em segundo lugar, é retratada como irrepreensível, vital, um bem moral absoluto. O efeito disto, diz ela, é a banalização e a glorificação simultâneas da NATO: torna-se tão brandamente burocrática que está abaixo do debate, e tão “existencial e essencial” que está acima do debate. E esta estratégia de legitimação tem sido evidente no debate limitado e rigorosamente controlado sobre a integração euro-atlântica nos países nórdicos, nenhum dos quais realizou referendos sobre a adesão. Após décadas de resistência popular à aliança, parece que a NATO está acima da democracia. Mas, como escreve Kuss, isso não significa que a NATO seja imposta a uma sociedade. O objectivo é, pelo contrário, “integrá-la no entretenimento, na educação e na vida cívica em geral”.

A prova disso está em todo o lado. Em Fevereiro, a NATO organizou o seu primeiro evento de jogos. Um jovem funcionário da aliança juntou-se ao popular streamer do Twitch ZeRoyalViking para jogar Among Us e conversar casualmente sobre o perigo que a desinformação representa para a democracia. Com eles estava uma alpinista influente e activista ambiental chamada Caroline Gleich. Enquanto os seus avatares astronautas navegavam numa nave espacial de desenho animado, eles falaram da NATO em termos brilhantes. No final do evento, a transmissão transformou-se num esforço de recrutamento: o funcionário da aliança falou sobre as vantagens do seu trabalho e incentivou os espectadores a consultarem o sítio Web da NATO para oportunidades de emprego em áreas como o design gráfico e a edição de vídeo.

O evento fazia parte da campanha da NATO “Proteger o Futuro“. Este ano, incluiu um concurso de banda desenhada para jovens artistas. A aliança também cortejou dezenas de influenciadores com grandes seguidores no TikTok, YouTube e Instagram, e trouxe-os para a sede em Bruxelas. Outros influenciadores foram enviados para a Cimeira da NATO do ano passado, em Madrid, onde lhes foi pedido que criassem conteúdos para o seu público.

A esquerda europeia foi totalmente cativada por este espectáculo. Seguindo o caminho dos Verdes alemães, os grandes partidos de esquerda abandonaram a neutralidade militar e a oposição à guerra e defendem agora a NATO. É uma inversão espantosa. Durante a Guerra Fria, a esquerda europeia organizou protestos em massa, com a participação de milhões de pessoas, contra o militarismo liderado pelos EUA e a instalação de Pershing-II e mísseis de cruzeiro da NATO na Europa. Actualmente, pouco mais resta do que a retórica radical esvaziada. Não restando praticamente nenhuma oposição à NATO na Europa, e com a expansão progressiva da aliança para além da zona euro-atlântica, a sua hegemonia é agora quase absoluta.

 

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A autora: Lily Lynch é escritora e jornalista. É co-fundadora e editora chefe de Blakanist Magazine. Nascida na Califórnia, estudou em UC Berkeley e na London School of Economics. Vive em Belgrado.

 

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